quarta-feira, 31 de março de 2010

Era uma vez um tal de Adão...

Uma vez, havia muito tempo (tanto que ninguém jamais descobriu quando foi), existia um lindo lugar chamado “Paraíso”. Lá havia tudo o que era preciso para se viver bem e feliz (exceto telefone celular e internet). Neste lugar (que igualmente ninguém jamais descobriu onde era) vivia perambulando um sujeito entediado chamado Adão. Mesmo tendo todas as mordomias que o mundo podia oferecer na época, sem ser político, Adão vivia triste e deprimido. Não tinha ânimo sequer para colocar alguma roupa e andava sempre nu, embora más línguas afirmem, de fonte segura, que ele gostava de se fantasiar com uma folha de figueira (o que não deve passar de intriga, pois jamais se encontrou uma testemunha ocular do fato).

Um dia qualquer Adão, de saco cheio daquele lugar perfeito e da vidinha enfadonha, pediu ao criador e dono do Paraíso - que muitos garantem tinha poderes sobrenaturais - que arrumasse alguém para lhe fazer companhia, pois não aguentava mais ficar sozinho falando com a cobra, a qual vivia insistindo para que comesse uma tal de maçã, produzida em Vacaria. O Criador, como ficou conhecido, mais tarde, o dono do Paraíso, vendo a tristeza do Adão, seu único filho até então (milhares de anos depois teria outro, que igualmente não teria um final feliz), resolveu atender seu pedido. Embora tenha feito Adão de barro (Adão é o mais antigo ancestral de Pinóquio, que com o avanço da tecnologia pode ser feito de madeira), o Criador resolveu inovar e inventou o que mais tarde ficou conhecido como “cirurgia”: extraiu uma costela de Adão e, fazendo o que ciência não conseguiu até hoje, mesmo com a decodificação do DNA e o descobrimento das células-tronco, utilizou-a para criar um novo ser: a (maravilhosa) mulher!

Sem imaginar, nem de longe, o que a mulher faria no futuro, o Criador apresentou-a para Adão. Quando ele viu a obra do Criador, ainda zonzo e enjoado pelo efeito da anestesia, não entendeu direito o porquê daquelas “diferenças”. Porém, assim que o Criador explicou-lhe a sua intenção ao criar a mulher, os olhos de Adão brilharam e ele não pode disfarçar um sorriso maroto. Adão ficou tão impressionado com este novo ser que a idéia de somente ter uma companhia para conversar estendeu-se para passeios sob o luar e jantares à luz de velas (o que era feito porque no Paraíso não havia energia elétrica, mas que deu tão certo com Adão que se tornou um ritual de sedução que sobreviveu ao tempo). Adão começou a chamar a mulher de Eva (alguns afirmam que este nome significa Entidade de Valor Altíssimo) e tornaram-se tão íntimos que em pouco tempo um já estava usando a folha de figueira do outro, trocando escovas de dente, desodorante, essas coisas. Tanta intimidade levou Eva a influenciar fortemente as decisões de Adão. Foi assim que Adão fez a única coisa que o Criador disse que ele jamais poderia fazer: comer a maça que Eva queria insistentemente lhe dar. Eva, encantada pela habilidade da cobra, tentava de todas as formas seduzir e convencer Adão a comer a sua maçã e cometer o tal “pecado original” sobre o qual o Criador havia falado. Adão, utilizando-se te todas as forças de sua alma, mantinha-se irredutível, passando incólume pela provação que lhe impusera o Criador.

Em uma linda noite primaveril. Eva estava inspiradíssima, exalando estrógeno por todos os poros. Escolheu de seu guardarroupa uma diminuta folha de parreira que havia colhido recentemente e guardado para uma ocasião especial, passou em todo o corpo um hidratante a base de óleo de amêndoas, gérmen de trigo e mamão-papaia, reforçado com elastina e colágeno, colocou um perfume de jasmim (único na época, já que a França ainda não existia) e, após passar um cintilante batom vermelho da Helena Rubenstein (esta sim é da época), pensou: “Hoje ele não escapa!”. E partiu com sua maçã em busca de seu consorte.

Eva encontrou Adão cortando lenha para acender o fogo e preparar o jantar. Ela, usando de toda sua sedução, segurou Adão pela mão e o conduziu até uma clareira na floresta, iluminada pelo luar, cujo solo estava coberta por pequenas flores coloridas e perfumadas. Permanentemente encantado pela beleza da maçã de Eva e pela exuberante sensualidade de sua dona, Adão quase já não mais controlava o desejo de comê-la, mas ante a determinação do Criador, resistia bravamente aos seus instintos. Mas neste dia todos os limites foram rompidos. Eva estava exuberantemente linda. Nosso correto ancestral não resistiu à tentação e, embriagado pelo desejo, caiu de boca na maçã. Adão, então, tornou-se o primeiro homem a fazer o que não devia, seduzido por uma mulher. Uma característica do comportamento masculino começara ali a ser criada...

No momento em que Adão, já babando de vontade, deu a primeira mordidinha na maçã, segura pelas delicadas mãos de Eva, ouviu-se um pequeno gemido, digo, um grande trovão. O céu tornou-se turbulento quando nuvens acinzentadas e negras se agitavam e misturavam rapidamente, raios rasgavam a noite, que se tornara escura e gélida com o vento que começava a soprar, e mais trovões faziam a terra tremer. Repentinamente uma delas se abre em raios de luz tão intensos que ofusca os jovens mancebos. Aparece, então, o criador, vestindo pantufa imitando joaninha e pijama de pelúcia com estampas do Harry Potter, o que demonstrava já estar pronto para o descanso divino. Com sua voz retumbante e em um tom que demonstrava o controle exercido sobre sua ira naquele momento, disse:
- Adão, meu filho, sei que foste feito de barro e não tiveste mãe. Eu, porém, fiz de tudo para que fosses feliz. Dei-te o Paraíso e tudo o que existe de melhor nele. Até a mulher eu criei para ti e, principalmente, jamais necessitou trabalhar para ter todas as benesses que a terra produz. Tiveste tudo ao alcance da mão, sem que nenhum esforço necessitasse despender. Somente um único pedido fiz eu em troca: que não comesses a maçã. Tu, porém, não foste capaz de me obedecer a este único e singelo pedido. Portanto meu filho, serei obrigado a impor-lhe o mais rigoroso dos castigos. Para sobreviveres, terás que ganhar o alimento com o suor do teu rosto. Não mais viverás no Paraíso. Terás, Adão, que “trabalhar”!

Ao ouvir esta palavra, adão ajoelhou-se em prantos e suplicou ao Criador que não lhe impusesse tamanha pena. Que seu pecado se justificava pela irresistível beleza de Eva. Que a cobra lhe torturava, fazendo-se sempre presente em seus encontros com ela. Que o Criador havia lhe imposto um teste rigoroso demais, dando-lhe como companhia um ser fisicamente tão perfeito, mas com uma capacidade imensa de manipular-lhe os valores. O Criador, entretanto, foi irredutível e expulsou definitivamente Adão do Paraíso. E, não bastando, obrigou-lhe a levar consigo e sustentar com seu trabalho também a mulher.

Adão não havia percebido, naquele momento, que lhe obrigar a levar junto a mulher, que lhe havia causado aquele irrecuperável prejuízo, ao contrário de mais um castigo, era uma compensação dada pelo Criador por lhe ter imposto tamanho sacrifício. A mulher, por duas virtudes características, viria a ser a grande força para que Adão pudesse sobreviver naquela selva na qual fora jogado pelo criador.

No início, Adão até achava que era ele quem detinha o poder na relação, mas descobriu mais tarde o quanto estava errado. A mulher tornara-se tão forte e importante que, ao longo da história, os descendentes de Adão tentaram, de todas as formas, fazer-lhe um ser menor, submisso. Mas, mesmo que aparentemente tenham conseguido, a mulher sempre demonstrou seu verdadeiro valor. Felizmente hoje, na maioria das civilizações, a mulher livrou-se dos grilhões opressores da sociedade patriarcal e machista e liberou geral, mostrando, a cada dia, quem manda de verdade nesta m... de planeta!

Mas o que aconteceu depois?

Adão teve filhos, que tiveram mais filhos que tiveram mais filhos (felizmente incesto não era crime nem pecado naquela época) e contou-lhes a sua história. Seus filhos contaram aos seus netos, que contaram aos seus filhos que... contaram para todo mundo. E hoje, todos acham que o trabalho é castigo, é punição. Exceto os orientais, que nunca ouviram falar neste tal de Adão e sua formação religiosa e filosófica lhes ensina, diferentemente da nossa, que trabalho, ao contrário de ser um castigo divino, é uma dádiva de Deus. Dádiva que, no conceito oriental, dá ao homem dignidade, valor e respeito por si próprio. Por isso não conseguimos entender porque os orientes sentem-se felizes por trabalharem por toda a vida, dezoito horas por dia e, ignorantes quanto ao real significado e valor do trabalho, acreditamos que os melhores dias do ano são as férias e feriados. Não buscamos no trabalho a felicidade. Não consideramos o trabalho um prazer. Somos tão estúpidos que nos torturamos em um trabalho que não queremos fazer, durante as oito melhores horas do nosso dia, pelos trinta melhores anos de nossa vida. Fazemos o que não gostamos, que não nos dá prazer, acreditando que seremos felizes quando nos aposentarmos com o salário do INSS. Este pensamento e atitude, rotineira na vida da maioria das pessoas, só faz aflorar o que a cultura ocidental realmente valoriza: nosso incontestável apego ao ócio.

E por tudo o que aconteceu, desconfio que o Paraíso ficava onde viria ser o Brasil e que Adão e Eva foram os primeiros ancestrais dos brasileiros...

P.S. A origem latina da palavra trabalho é TRIPALIUM: instrumento de tortura da idade média que arrancava as vísceras do torturado.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Separação

Embora precisasse ir, eu não conseguia – ou ainda não queria – me mover. Algo ainda me mantinha imóvel e em silêncio à sua frente. E de nada adiantaria dizer alguma coisa. Chegara o momento de partir. E definitivamente. Existem momentos em que não há como pedir para ficar. Pedidos podem alimentar os desejos, mas quando a partida se torna inevitável, as palavras ficam vagas. E nosso tempo passou...

Eu estava em pé. Ela estava sentada à minha frente. Os cotovelos apoiados nos joelhos sustentavam o rosto mergulhado nas mãos. Soluçava. Por vezes gemia como sentisse uma angústia de quase dor. Gemia baixinho esta angústia, externada pelo som que vinha mais da alma que do corpo. E voltava a soluçar. Olhei-a com ternura. Sabia que, neste momento, nossos sentimentos eram completamente diferentes. Podia somente imaginar o que ela sentia. Quase via sua dor. Mas sabia de sua força. Sempre admirei a maneira como ela enfrentava a vida. Era melhor do que eu nisso. Muito melhor. E por isso o sentimento de pena, dentre todos os que poderia ter naquele momento, era um dos que não teria. Não. Pena não. Sabia que todo sentimento, por mais dolorido, por quanto sofrido fosse, passaria com o tempo e que ela saberia encontrar o centro da vida novamente. Eu sabia que esta dor deixaria uma cicatriz profunda. Uma marca que sempre estaria ali, presente. Mas, afinal, já temos tantas produzidas pelas experiências que ao longo da vida definiram o quanto vivemos, o que aprendemos e que nos tornaram o que somos. E não são as mais doloridas, as mais sofridas, que marcam mais nossa curta passagem por aqui? E ela sempre foi assim. Sempre soube se reencontrar após nossos desencontrontos. Sempre soube se superar como forma de superar as crises que viveu. Sempre soube achar seu eixo. Ela era assim. De repente erguia a cabeça, limpava o rosto e assumia tudo o que tivesse que rescaldar. E, afinal, o tempo se encarregaria de transformar a saudade dolorida em lembranças ocasionais, reavivadas em fotos de família revistas em alguma limpeza ocasional dos armários, em uma mudança de endereço quando fossem eliminados os excessos da vida antiga, ou na visita de quem tenha algo a relembrar em um passando conjunto. Ou, quem sabe ainda, vez por outra, quando a solidão brindar com a saudade uma tarde fria de inverno, ajudar o vinho e um CD com a nossa música a tratar com perfeição dor da ausência. Mas o tempo sempre sabe como fazer. Nos tira constantemente o que nos falta viver, mas é por vezes é um amigo que vai nos alivando a alma. Assim é o tempo...

Ela levantou o rosto, recostou-se no sofá, cruzou as pernas mantendo as mãos entre elas, deitou levemente a cabeça em direção ao ombro e me olhou. Uma lágrima correu pelo lado de sua face. Parecia estar mais serena, ainda que demonstrasse uma mistura de dor e carinho no olhar. Sabia que entre nós não haveria mais palavras. Ficariam para sempre as que já foram ditas, mas somente elas.

E chegava definitivamente a hora de partir. Percebi isso quando ela, em sobressalto, levou as mãos à boca para reter o grito de dor, transformado em um gemido apertado e dolorido após o médico desligar o desfibrilador. O sinal contínuo do monitor cardíaco anunciava o que eu já sabia ser inevitável. Mesmo assim olhei para trás, por sobre o ombro, e senti um misto de frustração e alívio. Embora estivesse me sentindo leve, não diria feliz, mas em paz, as massagens incessantes no peito, oxigênio bombeado artificialmente e choques me incomodavam. Sei que é necessário, mas não é o que gostaríamos de ver ao deixarmos este mundo. Pior é o esforço inútil alimentando a esperança nos olhos de quem amamos, mas que por saber inútil, não a tê-la mais em nós mesmos. O médico olhou para ela e sacudiu a cabeça levemente, em um não tão silencioso quanto definitivo, e que ecoou na sala como um grito reproduzido por ela com um gemido abafado. Senti, por fim, alívio. Eu precisava ir.

Olhei novamente para meu corpo deitado sobre a cama. Não era mais eu. Era um corpo inerte, frio e triste. Tudo estava triste. Embora nada modificasse a paz que eu estava sentindo.

Antes de a enfermeira cobrir meu corpo com o lençol, ela levantou e caminhou até ele. Deu um beijo na testa. Enxugou as últimas lágrimas da face com a parte interna de ambas as mãos. Ergueu a cabeça e respirou fundo. Seu rosto voltou a ter a serenidade de sempre. Ela era assim. Sabia enfrentar muito melhor a vida do que eu. E eu, definitivamente, precisava ir...