quarta-feira, 3 de março de 2010

Separação

Embora precisasse ir, eu não conseguia – ou ainda não queria – me mover. Algo ainda me mantinha imóvel e em silêncio à sua frente. E de nada adiantaria dizer alguma coisa. Chegara o momento de partir. E definitivamente. Existem momentos em que não há como pedir para ficar. Pedidos podem alimentar os desejos, mas quando a partida se torna inevitável, as palavras ficam vagas. E nosso tempo passou...

Eu estava em pé. Ela estava sentada à minha frente. Os cotovelos apoiados nos joelhos sustentavam o rosto mergulhado nas mãos. Soluçava. Por vezes gemia como sentisse uma angústia de quase dor. Gemia baixinho esta angústia, externada pelo som que vinha mais da alma que do corpo. E voltava a soluçar. Olhei-a com ternura. Sabia que, neste momento, nossos sentimentos eram completamente diferentes. Podia somente imaginar o que ela sentia. Quase via sua dor. Mas sabia de sua força. Sempre admirei a maneira como ela enfrentava a vida. Era melhor do que eu nisso. Muito melhor. E por isso o sentimento de pena, dentre todos os que poderia ter naquele momento, era um dos que não teria. Não. Pena não. Sabia que todo sentimento, por mais dolorido, por quanto sofrido fosse, passaria com o tempo e que ela saberia encontrar o centro da vida novamente. Eu sabia que esta dor deixaria uma cicatriz profunda. Uma marca que sempre estaria ali, presente. Mas, afinal, já temos tantas produzidas pelas experiências que ao longo da vida definiram o quanto vivemos, o que aprendemos e que nos tornaram o que somos. E não são as mais doloridas, as mais sofridas, que marcam mais nossa curta passagem por aqui? E ela sempre foi assim. Sempre soube se reencontrar após nossos desencontrontos. Sempre soube se superar como forma de superar as crises que viveu. Sempre soube achar seu eixo. Ela era assim. De repente erguia a cabeça, limpava o rosto e assumia tudo o que tivesse que rescaldar. E, afinal, o tempo se encarregaria de transformar a saudade dolorida em lembranças ocasionais, reavivadas em fotos de família revistas em alguma limpeza ocasional dos armários, em uma mudança de endereço quando fossem eliminados os excessos da vida antiga, ou na visita de quem tenha algo a relembrar em um passando conjunto. Ou, quem sabe ainda, vez por outra, quando a solidão brindar com a saudade uma tarde fria de inverno, ajudar o vinho e um CD com a nossa música a tratar com perfeição dor da ausência. Mas o tempo sempre sabe como fazer. Nos tira constantemente o que nos falta viver, mas é por vezes é um amigo que vai nos alivando a alma. Assim é o tempo...

Ela levantou o rosto, recostou-se no sofá, cruzou as pernas mantendo as mãos entre elas, deitou levemente a cabeça em direção ao ombro e me olhou. Uma lágrima correu pelo lado de sua face. Parecia estar mais serena, ainda que demonstrasse uma mistura de dor e carinho no olhar. Sabia que entre nós não haveria mais palavras. Ficariam para sempre as que já foram ditas, mas somente elas.

E chegava definitivamente a hora de partir. Percebi isso quando ela, em sobressalto, levou as mãos à boca para reter o grito de dor, transformado em um gemido apertado e dolorido após o médico desligar o desfibrilador. O sinal contínuo do monitor cardíaco anunciava o que eu já sabia ser inevitável. Mesmo assim olhei para trás, por sobre o ombro, e senti um misto de frustração e alívio. Embora estivesse me sentindo leve, não diria feliz, mas em paz, as massagens incessantes no peito, oxigênio bombeado artificialmente e choques me incomodavam. Sei que é necessário, mas não é o que gostaríamos de ver ao deixarmos este mundo. Pior é o esforço inútil alimentando a esperança nos olhos de quem amamos, mas que por saber inútil, não a tê-la mais em nós mesmos. O médico olhou para ela e sacudiu a cabeça levemente, em um não tão silencioso quanto definitivo, e que ecoou na sala como um grito reproduzido por ela com um gemido abafado. Senti, por fim, alívio. Eu precisava ir.

Olhei novamente para meu corpo deitado sobre a cama. Não era mais eu. Era um corpo inerte, frio e triste. Tudo estava triste. Embora nada modificasse a paz que eu estava sentindo.

Antes de a enfermeira cobrir meu corpo com o lençol, ela levantou e caminhou até ele. Deu um beijo na testa. Enxugou as últimas lágrimas da face com a parte interna de ambas as mãos. Ergueu a cabeça e respirou fundo. Seu rosto voltou a ter a serenidade de sempre. Ela era assim. Sabia enfrentar muito melhor a vida do que eu. E eu, definitivamente, precisava ir...

Um comentário:

  1. Há dores que não fazem sentido..
    Me lembro de uma fraze de Mário Quintana "Já tive medo da morte, morrer que me importa? O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...
    amei seu texto, parabéns pelo seu blog, voltarei
    Abraços de Marcia ( Minas gerais)

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